Velha ranzinza

Publicado por Mirian Salete Garcia - 30/10/2013 - 16h05

Acordei porque já havia dormido o suficiente. Único motivo que tenho, hoje, para acordar. Aos setenta e três anos, viúva, morando com uma filha que tem sua própria rotina de trabalho, suas amizades, seus filhos já casados e, por ter-se separado, ter vindo aqui buscar abrigo – por absoluta falta de oportunidade outra -, não há o que me motive a inaugurar um novo dia com alegria.
Confesso que quando aquela vizinha bateu à minha porta, desejando-me boas vindas, eu fiquei indiferente. Oras, pensei: veio por educação, a hipócrita! Bem mais jovem, não vai querer uma velha como eu a pedir-lhe favores. Deve, simplesmente, ter seguido uma regra de etiqueta. Interessante é, que nenhum outro vizinho fez o mesmo que ela. Tomei a decisão de nunca dela precisar. Que ficasse esperando a oportunidade de ser útil. Se ela não tinha mais nada para fazer, eu é que não oportunizaria afazeres que a engrandecessem como pessoa aos olhos dos outros. Sim, porque certamente, contaria para todos uma carência minha ao lhe pedir algo.
Meses se passaram sem que nos cruzássemos nos corredores do edifício, até o dia em que uma florista não conseguia subir as escadas até o segundo andar, onde moro, por ser o vaso grande e o saco de terra muito pesado para ela. Toquei a campainha do apartamento em frente, separado por um razoável espaço aberto para escadas que subiam e desciam e deparei-me com a mesma criatura fingida do dia de minha mudança para cá.
Ela me cumprimentou e esperou o pedido. O fiz, tentando justificar, mas a apressada mulher já ia em direção ao térreo, fazer sua boa ação. Bem que vi, logo de início, que era fachada! Nem me deixou falar sobre minha artrite… Voltou toda poderosa com o vaso e o saco de terra. Nem precisou da ajuda da florista. Disse-me que se exercitava regularmente em uma academia e que estava habituada a levantar pesos. Mais uma amostra de seu caráter supérfluo. Eu sabia!
Ao sair, dispensando muitos agradecimentos, convidou-me para uma visita. Aceitei, sem a menor intenção de efetivar a ocasião. Eu tinha minha televisão e meu tricô, então, nada de perder meu tempo com essa vizinha cheia das armadilhas sociais.
Num dia chuvoso, frio, eu fiquei melancólica. Lembranças de meu falecido marido, da antiga casa, das amizades que se afastaram naturalmente, pois eu não era mais par, estava singular, então… Bem, decidi ver o que aconteceria. Pior do que já me sentia não podia ficar. Toquei a campainha e ela atendeu rápido. Olhou-me com surpresa e um sorriso no rosto e pediu que eu entrasse. Entrei e olhei em volta. Um apartamento aconchegante, mas sem muitos enfeites. Ela percebeu meu olhar e me disse que não tinha muito jeito com decoração. Que nada! Os móveis eram convidativos; a sala convidava para conversas longas, a mesa de jantar parecia despreparada para visitas… Tinha em cima um objeto de colocar na parede, mas que estranhamente, ela colocou ali. Mais uma vez, explicou-me que o preferia ali, já que deixava a mesa de vidro mais bonita, junto com uma planta verde. Eu fiquei pensando… Se ela fosse tão simpática mesmo, não deixaria aquela telha pintada (tão lindamente, aliás), em cima da mesa de jantar. Claro! Tudo fingimento. Por certo ninguém a aturava e tampouco a visitava, ou não a visitavam por não a aturarem.
Foi andando para a cozinha e dizendo que me prepararia um café. Entrei. Estranho! Senti algo estranho! Sua cozinha era ainda mais convidativa que sua sala de estar. Fui logo repreendendo-a mentalmente por não me convidar a sentar no sofá da sala. Por certo queria que eu fosse logo embora, mas não! Ela preparou o café para ela também e o tomamos ali na mesa de sua cozinha. Começamos a conversar e ela me falou sobre gostar de receber as pessoas mais íntimas na cozinha, pois tudo ali estava perto: o café, o fogão, um pedaço de bolo… Até seu computador estava sobre a mesa. Ali, disse-me, gostava de estudar. Depois de os filhos crescerem, resolveu fazer uma faculdade.
Me vi rindo muito com ela. A conversa fluiu tão naturalmente, sem esforço algum. Eu não via a mulher fingida de antes, mas sim uma pessoa que não precisava de muitas explicações quando lhe faziam um pedido; que ficava sem jeito com muitos agradecimentos. Ela era simples, mas ao mesmo tempo sofisticada. Hummm… Será que confio, pensei. De repente chegou seu marido. Ela se levantou e os dois se abraçaram rapidamente, se deram um beijinho e ela logo me apresentou, dizendo que finalmente eu tinha vindo visitá-la. Ele se mostrou contente. Sentou-se conosco depois de pegar uma xícara de café para si mesmo e começou a conversar. Comigo! Uma velha! Meia hora depois foi o filho quem chegou. Me viu, cumprimentou-me e foi abraçar os pais. Ficou por ali, preparando um sanduiche e entrando na conversa. Eu confesso que não queria mais sair dali.
Saí. Hoje somos muito amigas. Tomamos nosso café ou na casa dela ou na minha. Saimos juntas e ela me ajuda, pois uso bengala e ando com muita dificuldade.
Quando recebo uma visita, de algum amigo ou amiga que de vez em quando vem cumprir com seu papel social, em minuto algum eu me deixo enganar por essas pessoas que dizem terem sentido saudades de mim… Pois sim! Eu bem sei que sou uma vítima perfeita para a “boa ação de todo dia” delas; eu recebo-as na cozinha.
Nada de sofisticamentos na amizade. A amizade é simples, requer local adequado. A sala fica para situações mais formais. Meus antigos amigos estranham e não sei se aprovam, mas eu… Eu sou hoje uma mulher de cozinha, uma velha que aprendeu que refeições alegres se dão em torno de uma mesa rodeada por geladeira, fogão, pia, armários. Minha mesa de jantar está cheia de enfeites, coisas caras que antes escondia e que agora decoram uma mesa suntuosa. Mudei de pensamento sobre minha vizinha, mas não de todo. Fico pensando nela com seu marido 15 anos mais velho, suas idas à academia… Ela é querida comigo, mas eu ainda acho…. Na verdade tenho quase certeza de que ela me usa como mais uma fachada para seu marido não desconfiar… Aí tem! Eu é que não vou alertar o tolo. Academia, faculdade, uma velha para com a qual bancar a boazinha, bolo no forno, abraços e beijinhos no filho e marido… Uma criatura genial na arte da manipulação. É isso que ela é. Deixa ela pensar que acredito que é como parece ser. Deixa ela… Eu sou de outros tempos… Sei bem do que as mulheres de hoje são capazes, essas moderninhas. Um dia a casa cai. Ah, se cai!

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2 comentários publicados
  1. Edenircio Turini, Ribeirão Pires S.P

    Vivemos com tantas coisas erradas que desconfiamos de tudo,o melhor e analisarmos primeiro antes de julgar.

    • Mirian Mirian

      Está certíssimo. Que bom que entendeu minha proposta. Obrigada por seu comentário.

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