“Eu via as margens, somente o que meus olhos apressados percebiam. Eu não me demorava o suficiente no olhar que lançava sobre aquelas crianças que sob meus cuidados estavam. Isso mudaria.”
Iniciava mais uma chamada de meus trinta e sete alunos do segundo ano do ensino fundamental; levantei meu olhar da lista ao não receber resposta de uma aluna. Era assim há 18 anos. Devia ser assim hoje. Eu sabia da vida de meus alunos, de todos eles, pois um professor, para obter resultados satisfatórios, deve se aventurar nas idiossincrasias de cada um… Tentar, ao menos, entender a causa dos comportamentos, e essa, geralmente está no lar; nas pessoas que convivem num mesmo ambiente e comungam de uma mesma realidade.
Era um Grupo Escolar. TÃnhamos dificuldades ali, sim. Uma realidade dura, sem muitos estÃmulos, sem muitos horizontes visÃveis à queles olhinhos fixados no chão firme da sobrevivência, sem conseguir vislumbrar além. Seus sonhos mais ousados eram com doces em abundância.
Ela não estava naquele dia. Procuraria saber o porquê depois, ao voltar para minha casa, que ficava próxima de todos; também morava na vila. Também venci muitas dificuldades e procurava ensinar à s crianças que o estudo proporciona melhoria de vida, que eles precisavam crescer com o conhecimento como companheiro de brincadeiras e aniversários. Libertá-los pelo saber era minha missão. Missionária não de diploma que dá tÃtulo, mas de vocação. Para mim, o diploma legitimava socialmente, o chamado de minha alma. Minha aula foi interrompida um pouco depois, quando uma aluna de outra série veio avisar que a Maria estava lá no pátio da escola, chorando. Imediatamente, fui ao seu encontro.
Maria não estava na sala de aula, porque suas pernas, que apareciam sob a saia curta do uniforme, estavam machucadas. Eu reconheci aquelas marcas e soube que não era a surra de vara que havia recebido que a fazia soluçar, desamparada. Criança acostumada a apanhar chora só na hora. Não. Minha pequena Maria de oito aninhos estava ferida por dentro. Sentei ao seu lado e a abracei. Resistiu um pouco. Estava acostumada a me ver como autoridade a ser respeitada. Falei que gostava muito dela e que sabia que não chorava de dor nas perninhas. Pedi que me contasse e foi quando ela me olhou nos olhos e disse-me, com voz entrecortada, que não era “ladronaâ€.
Pensei no pai dela e fiquei muito triste, porque sabia que a filhinha tinha verdadeira adoração por ele; sempre saiam juntos nos finais de semana; ela, de mãozinha dada com a única pessoa com quem eu a via sorridente. Maria era introspectiva, séria, falava pouco, arredia com os amigos. Na minha avaliação dela, sempre descartei quaisquer maus tratos do pai ou da mãe que ultrapassasse uma surra corretiva, tão comum aos pais daquela geração e cultura. Porque então, a acusação? A explicação veio jorrando de uma fonte ainda inexperiente na articulação das palavras. Ela dizia muito, com palavras trocadas, apressadas, como se ao colocar para fora rapidamente o acontecido, uma mão de ferro desapertasse seu coraçãozinho.
Não a interrompi uma única vez. A hora era  de “entrar na tenda com elaâ€, que é o que significa a palavra “entenderâ€. E foi o que fiz. Entrei em sua dor para poder, depois do entendimento, retirá-la daquela decepção tão dolorosa.
Maria ouvia sempre sua mãe e o pai brigando por causa de dinheiro – conforme palavras dela – e sentia muita pena dos dois. Como o pai era quem trabalhava, ela sentia mais compaixão dele, pois parecia ser o responsável pela falta do necessário para pagar o mercado onde faziam compras durante o mês. Longe de julgá-lo, a pequena procurava um meio de ajudar. Então, ela observou uma coisa: seu pai sempre dava moedas para ela e os dois irmãos comprarem chicletes. Ela podia abrir mão da goma de mascar e guardar as moedas para ajudar a pagar a comida. Seu pai ganhava pouco e ainda lhes dava moedas, pensou. Sabia do pouco salário pela mãe e ouvia o pai perguntar se ela por acaso queria que ele roubasse? Não. Tinha que ajudar o pai e assim não veria mais sua mãe chorando. Já tinha visto o pai chorar, mas ele nunca quis dizer o motivo. Seria isso?
Maria era muito intuitiva. Sua atenção se voltou para as outras moedas que o pai esquecia nos bolsos das calças e que caiam quando a mãe ia lavá-las; nas que encontrava vez em quando no chão, meio escondidas. Será que eles não viam? Se uma moeda pagava um chiclete, várias ajudariam a pagar a comida. E a menininha assumiu a tarefa de trazer lenitivo para os pais. Achou um saquinho plástico vazio e começou a caça à s moedas dia-a-dia. Era pouco o que encontrava; pediu ajuda à s suas duas amiguinhas e saÃram em busca, pelas ruas de terra. Não teve vergonha de expor seu problema e as duas traziam também as que encontravam pelas suas casas.
Chegou o dia em que seus pais sentavam para fazer as contas. Esse dia, à tarde, em que a encontrei no pátio da escola. Ela foi até seu esconderijo e adentrou a cozinha com o saquinho quase cheio nas mãozinhas. Nesse ponto de sua narrativa simples, não conseguiu mais falar e recomeçou o choro doÃdo. Apertando o abraço, ergui seu rostinho e falei que seu pai cometeu um engano. Claro! Eu iria junto com ela até sua casa e explicaria o que aconteceu. Que perdoasse seu paizinho querido por ter entendido errado. Que pais cometem erros, mas que tudo ficaria bem… Que ele não quis chamá-la de “ladronaâ€; com certeza, já tinha pensado e estaria triste.
Ela disse que já havia explicado tudo, como explicou para mim; que seu pai lhe deu um abraço, mas sua mãe começou a chamá-la de ladra, dizendo para o pai que a filhinha querida dele além de roubá-lo, ainda roubava dos vizinhos e, num ataque de fúria, levou-a para fora e deu-lhe as varadas. Só então notei que ela se desviava do meu abraço porque suas costas também estavam machucadas. Disse-me que o pai impediu quando viu que era demais, porque a regra da casa era que a mãe educava os filhos. Ela podia bater, mas o pai pedia sempre que não machucasse. Se ele interferia, a mãe chamava-o de bobo, de molenga, de tantas outras coisas que até esqueci. Disse-me que a mãe não gostava dela, porque tinha nascido morena, parecendo demais com a famÃlia do pai, a qual odiava e chamava de “cabocladaâ€, com a suposta superioridade de sua origem italiana.
Eu fiquei sem saber o que dizer por longo tempo. Estava preparada para defender um pai amoroso que tinha falhado no julgamento que fez da atitude da filha, mas, como defender uma mãe que age assim? Fui com ela até sua casa na esperança de que a pequena estivesse enganada, não quanto à surra e a sentença equivocada de ladra, mas quanto ao amor da mãe.
Não pude entrar na casa. No outro dia, esperei o pai sair e conversei com ele. Confirmou tudo o que a menina dissera. Disse-me que a única coisa que podia fazer era dar todo seu amor a ela e levá-la consigo sempre que era possÃvel, além de orientá-la para ficar longe do caminho da mãe e fazer tudo que ela mandasse. Reunimos-nos na escola e a pequena Maria começou a passar o dia inteiro conosco. Era o que podÃamos fazer. Fizemos, mas uma fala do pai nunca me saiu da mente. Ele me olhou tristemente quando perguntei se ele não podia conversar com sua mulher e explicar o mal que estava fazendo, e me disse: _ Professora, a senhora acha que já não tentei de tudo? O que posso lhe garantir é que a Maria tem todo o meu amor e eu a ensino a amar a mãe também. Amo todos os meus filhos, mas ela… Ela eu amo por mim e pela mãe. A senhora seria capaz de ensinar minha esposa a amar a filhinha tão carinhosa, como ama os outros dois?
Ensinar uma mãe a amar? É preciso, meu Deus? Eu pensava saber da vida de todos, mas percebi que estava sendo arrogante. Eu via as margens, somente o que meus olhos apressados percebiam. Eu não me demorava o suficiente no olhar que lançava sobre aquelas crianças que sob meus cuidados estavam. Isso mudaria.
Maria cresceu. Hoje a encontrei, dezoito anos depois. Sempre a imaginei com problemas, fugindo de casa, vivendo o resultado do desamor materno. Mas, a mulher que encontrei está feliz! É professora, é equilibrada e transmite muita paz ao falar.
Só pude concluir uma coisa: Maria fez escolhas. O pai a amava… A crueldade da mãe não determinou a vida da filha. O fator preponderante foi o amor do pai. Nesse amor sentido, a certeza de que queria amar. Sim. Ela escolheu. Escolheu o amor e a felicidade. O contrário, o desamor, ela sentiu e não o fortaleceu. Eu peço licença para dizer que o amor nem sempre vence, mas, no caso de Maria, ele a levantou em todas as etapas do aprendizado da vida e ocupou definitivamente o pódio no seu coração.
Na despedida, sem termos tocado naquele assunto, ela me disse: _ Dona Salete… Eu e meu marido ensinamos nosso filhinho de três anos a guardar moedas, sabia?
Sorriu feliz, me deu um beijo e foi ao encontro da vida que construiu a partir do amor que recebeu.

Essa história vem de encontro com o que aprendi com minha querida avó a quem eu chamava de MÃE. Ela e meu avô nunca comentavam qualquer dificuldade na frente das crianças.
Dizia ela que cada coisa tem seu tempo, o tempo de infância é para as crianças se procupar com suas brincadeiras. Criança que cresce ouvindo os problemas dos adultos, difÃcilmente se torna um adulto auto-confiante.
Exatamente o que eu penso. Obrigada e honrada com sua visita e comentário.